O que aconteceu com Marcel Proust e seu velho amigo há muito não visto e dele há décadas não tendo notícia, numa rua não muito movimentada de Paris, também aconteceu comigo, várias vezes, uma delas numa exposição, em Biobao, no Museu Guggenheim, quando dei de cara com um amigo de infância na antonense cidade, minha e de Osman Lins.
O amigo de Proust e por certo o meu, queriam saber se tinham mudado ao longo do tempo de vasta distância, nessas distâncias que nem o tempo explica, se for verdade que o tempo não passa ou flui, sua representação, tanto imaginária, real, quanto simbólica. O autor de “Em busca do tempo perdido” e eu dissemos a mesma coisa, ambos de forma intencionalmente enigmática: “Menos”. “Menos o quê”? Foram as duas indagações.
Lembrei-me, por analogia, do que Proust havia respondido: “Nada disso. Você está o mesmo. Apenas menos”. Não sei da parte de Proust, mas eu deveria ter dito, não fosse a surpresa do momento, sobre esse acaso, que, desde a aurora da civilização, as pessoas não se dão por satisfeitas com a noção de que os eventos são desconectados e inexplicáveis. O tempo, suas invariantes e essências, seu contínuo processo de vir-a-ser, que haveria de marcar a figuração do amigo de Proust, e deixaria marcas na alma e no rosto daquele caro amigo vitoriense, num reencontro inimaginável. Mas aconteceu. Esse mesmo tempo, fluxo perene da vida, que foi visto por Ricoeur à margem do “Em busca do tempo perdido” como sendo uma fábula – o tempo – que se apoia no poder que tem a ficção. O tempo, seja retilíneo ou não.
Há poucos dias o mesmo episódio aconteceu, de uma forma, para mim, gratificante. Tive um reencontro com Andrea Campos e sua poesia. A sua poesia foi, no passado não distante, uma poesia auspiciosa, reunida num livro do qual também fui prefaciador. Leio, agora, uma nova coletânea de poemas dessa autora pernambucana, do Recife, neste novo livro “A CARNE DO TEMPO”. Um reencontro, para mim, cheio de surpresas, enigmas, abismos, desafios, sentimentos, emoções, não só com vertente criadora, inventiva. Com esse livro ela está, superlativamente, “mais”, (insisto em dizer) alcançando uma nitidez realista de certo modo sacudida de turbações, inclusive vocabulares.
Em Andrea e na sua poesia o tempo é uma relação kantiana, dela com ela própria e com o mundo, não quantificável. Uma poesia “mais”, com a experiência do sublime, quando nos fala de Eros, um dos mais difíceis temas da poesia de todas as épocas. Aliás, nunca um tema primordial como esse esteve tão ameaçado como hoje. Andrea consegue retira-lo do ostracismo, sem as formas da imitação. Não vulgariza. O erotismo, (tema tão complexo como o próprio viver), seu fazer-emergir numa linguagem sóbria, é o seu ponto alto, sua revelação poética, seu caminho, sua rota percorrida, seu ponto de chegada, desde o seu primeiro livro. Certos versos na descrição do êxtase e seus fluxos sonoros, talvez sejam influenciados por Hilda Hilst, quando a autora de “A Fadinha Lésbica” abandonou a poesia velada e a desvelou inteiramente para o público leitor. O fogo que se faz metáfora de muitos instintos, como na expressão de Umberto Eco no seu admirável “Nos ombros dos Gigantes”, está na poesia dessa autora, esse “Fogo que arde sem se ver,” (que) é ferida que dói, e não se sente; (que) é um
contentamento descontente, (e que) é dor que desatina sem doer”, cito o velho e divino Camões, o calor do fogo e da paixão, como se existisse dentro da autora o calor de um Sol que ilumina outro Sol, esse milagre generoso da Poesia. Nela, a rima não é uma simples repetição de sons. Aliás, isso é o que há de mais abominável na poesia. E por falar do Sol e seu calor, o sangue rubro que alimenta a poesia de Andrea, teria ela conhecido a Casa do Sol, da grande Hilda, em Campinas, no interior de São Paulo? Comparando as duas experiências poéticas de Andrea, a do passado e a deste novo “A CARNE DO TEMPO”, (um belo título) vejo uma poesia “mais”. É inquestionável a validade de seu olhar sobre o amor não meramente epidérmico, quando os neurônios estão fora da área de cobertura ou desligados.
A sua poesia é totalmente livre na composição das estrofes e no jogo das rimas. Tanto faz o uso das rimas com inteira convicção do seu formato, como não. Há versos tão longos que podem ser denominados de poesia em prosa. Neles, ela aproveita para “brincar” com as palavras. Existem figuras de linguagem, metáforas ricas. Correndo o risco de contrariar os defensores da classificação tradicional nos aspectos da estilística e seus receituários retóricos, eu diria que a metalinguagem, palavras que dialogam com outras palavras, se faz presente neste livro, por exemplo, nos poemas em que busca definir o amor e seus deslocamentos narrativos. A linguagem e seus elementos sonoros, a identidade dos sons terminais estão visíveis, intencionais, sua linguagem adquire um sentido expressivo, algo essencial na poesia de qualquer época.
O acaso, desde o começo, está envolvido nesta minha declaração de simpatia e admiração pelo livro de Andrea Campos. Fayga Ostrower, a mulher que mais admiro no campo da teoria da Arte, (uma artista plástica e ensaísta brasileira nascida na Polônia) me inspira, com a leitura do seu clássico “Acasos e Criação Artística”, quando ela diz que “não existe criação artística sem acasos”. O acaso, pseudônimo de Deus quando Ele não quer assinar o seu sagrado Nome, tão marcante nos episódios citados nas primeiras palavras deste Prefácio, que inspire novos “acasos” na obra dessa autora, e que tragam sempre a marca do “mais”, tão solene no uso dos matemáticos gregos.
No final, Andrea nos diz: “A poesia não paga a vida. Mas dá o troco à morte”. A obra poética também nos convida a uma reflexão, tem uma destinação, certas correlações que se estabelecem, principalmente sobre o existir, de maneira a dar o que pensar. Isto é, a poesia jamais “pagará” a quem se arriscar a seguir por suas trilhas, o preço da realização dos seus sonhos, desejos, voos de forma plena, satisfatória, inclusive pela espreita da morte para passar o troco, até pelo que não recebeu. Pode amenizar a inquietação humana a respeito da morte, apesar da multiplicidade de sentidos particulares em que se pode crer.
Macus Prado – jornalista