UM CASAL DE NAMORADOS VITORIENSES E A ARTE DE BEIJAR – por Marcus Prado

EM MÔNACO, cansado de subir uma ladeira perto do principado, fico por instantes sentado numa parte baixa da calçada. Perto de mim, vejo um jovem casal de namorados trocando loucos beijos, como aqueles descritos nos livros de Cassandra Rios, autora predileta na minha descoberta do amor epidérmico. Ao ver o descontraído amante, qual “manga-larga” em cio junto da fêmea, no auge das aquiescências, sem recusas nem pudor, penso que o amor precisa ser reinventado na contracorrente do mundo que o inviabiliza como amor sentimento, pois o espaço do olhar e do sentir tende a fechar-se. Tende a ser substituído pelo reino do princípio de prazer absoluto, pela busca de sensações epidérmicas imediatas.

Nas ladeiras de Mônaco lembro-me dos muitos casais de namorados meus conhecidos, amados amigos de infância, frequentadores das praças, e dos cinemas Braga e Iracema. Vejo-os, beijando-se, na mirante paisagem do tempo vitoriense , ao contrário dos jovens namorados de Mônaco, sem a banalização do beijo, amando-se de forma carinhosa e romântica, magnificados. Há porém um casal de namorados que ficou para sempre na minha lembrança, pela forma, que só havia nos filmes de Clark Gable com Carole Lombarde , de se beijarem. Refiro-me ao namoro, que durou quase uma década, de Ivanise Carneiro Leão com Antônio, o enfermeiro do médico José Evaristo da Cruz Gouvêa. Cada um guarda na lembrança o beijo inaugural, dado na primeira namorada. Eu guardo na memória visual os beijos da filha de dona Beatriz, minha professora de escola primária, no bairro do Livramento. Era um amor proibido pela família, que fazia lembrar o drama imortal “Romeu e Julieta” , de Willlian Shakespeare. Mas era desafiado, toda noite, pelos jovens amantes com abraços e beijos na calçada do clube O Camelo, quando era seu dirigente o senhor Serafim de Moura Ferraz, pai de Gilka, dono do melhor brinquedo de minha infância, a famosa “Montanha Russa”, que ele instalava nos dias de festas antonenses.

Menino ainda (a lembrança me diz que eu não tinha mais de dez anos) jamais havia visto um casal de namorados como aqueles, no conluio amoroso da paixão e dos beijos. Até hoje, fora das telas de cinema, nunca vi beijos iguais aos de Antônio e Ivanise. Fui “testemunha ocular” desses beijos, porque eles fizeram parte da minha descoberta do mundo e os mistérios do amor, muito antes de ler Carne, de Júlio Ribeiro. Logo cedo da noite, os vizinhos já haviam chegado do trabalho (Anísio Costa era um deles, ao lado de Pedro Ramalho e Brasiliano de Queiroz Monteiro) o jovem Antônio chegava de mansinho e ansioso, relógio de bolso na algibeira com pulseira exposta, indicando, por certo, as 19 horas. Tinha só uma hora de namoro, como era determinado naquele tempo, namoro semiescondido à luz morna gerada pela usina elétrica de Pirapama, quando não por inteiro as lâmpadas “apagadas por falhas técnicas” , como era habitual no dizer do cronista Ulisses Viana, crítico implacável, nas folhas dos jornais da cidade e da capital, da usina geradora de energia elétrica do Município. Momentos depois chegava a doce namorada.

Os dois se cumprimentavam docemente. Ela, preocupada com o vento nos cabelos soltos. Ele, olhando, desconfiado, para os lados, para o entorno do Pátio dos Currais, temendo com respeito as proibições da mãe atenta e vigilante da namorada. Breve silêncio entre os dois e um olhar cheio de ternura parecia iluminar a rua inteira. Um ligeiro toque do namorado no rosto da bela mulher como se estivesse diante dele uma deusa. O primeiro beijo na boca, ainda sem o gosto de mel. O segundo beijo parecia que o mundo inteiro desabava de emoção e doçura. Eu não precisava ficar oculto ou transparente na noite antonense para ver como se beijavam. Foram os primeiros beijos que eu vi na minha vida, muito diferentes do beijos dados pelo jovem casal de Mônaco. Nos namorados vitorienses havia algo como a alquimia do amor. No casal de Mônaco havia o amor incendiado pela fogueira do Apocalipse, a usina Pirapama em pânico, ou o Vesúvio em fúria. Parecia que o mundo todo ia acabar naquele instante, sem outra oportunidade de amar aquela única mulher.

Nestas anotações do viandante sem itinerários mapeados, máquina fotográfica à mão e uma filmadora na mochila cheia de filmes, a memória

se inclina para um elenco inalienável de pessoas que ficaram no retábulo das lembranças e contemplações mais amadas do passado vitoriense. Já se disse que a memória é um mecanismo de esquecimento programado: nem tudo ela registra e, do que registra, pouco ou quase nada aflora à nossa vida presente. Mas me esforço dentro do meu particular belvedere vitoriense, para que tudo volte à cena para louvar a terra e os filhos que nela nasceram. Tenho para mim, ao fazer essas anotações de viagem, que a memória é também uma força rejuvenescedora, talvez a única capaz de enfrentar o implacável envelhecimento.

Marcus Prado – jornalista 

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