João Câmara, paraibano de Olinda e Recife, pintor, gravador, desenhista, artista gráfico, professor e crítico vive, atualmente, mais uma fase criadora com a justa medida de quem deseja produzir uma grande obra literária. Fase dos grandes desafios de invenção, não só como pintor consagrado pela melhor crítica de arte do Brasil, mas, agora, como ficcionista. Como contista, para mim, com a leitura do seu primeiro livro nesse gênero, difícil e complexo, “Lidando com o passado e outros lugares”, editado pela Topbooks, tem sido uma grata surpresa.
Conhecíamos João Câmara do expressionismo e do fauvismo, quando submetia a sua pintura ao corpo humano, a torções e deformações, sem prejuízo de certo erotismo. O pintor das Cenas da Vida Brasileira, dos Dez Casos de Amor e de outros tantos instigantes temas. Mas como contista (a ironia com que aborda a política e o cotidiano brasileiro, como na sua pintura) mostra-se rico de caracteres e ideias, daí sendo visto de linhagem proustiana.
Há muito não vejo, em Pernambuco, depois de Osman Lins, Ariano Suassuna, Gilvan Lemos, Raimundo Carrero, Hermilo Borba Filho, Maximiano Campos, Cláudio Aguiar, Leônidas Câmara, Luzilá Gonçalves, Ronaldo Correia de Brito, Sidney Rocha, Marcelino Freire, Walther Moreira Santos, Fernando Monteiro, Luce Pereira, Cicero Belmar, sem esquecer o poeta e também contista José Rodrigues de Paiva, um autor com tamanha força de trânsito para o mundo visível com a vida que flui e suas transfigurações. Ele, com a sua obsessão plástico-visual, que produz coisas absolutamente incomuns nos seus (agora) dois ofícios, pode ser visto com muita minúcia de estrutura narrativa, com esse livro, como um dos melhores da atual geração de ficcionistas em nosso idioma.
O seu texto de notável senso plástico, muito bem escrito, de polivalente descoberta artesanal, com o olhar em fatos reais ou não, provoca uma perfeita sintonia com o leitor. Cada palavra no seu certíssimo lugar, concisão de estilo, um rigor quase ortodoxo na escrita, transfigurado pela cristalização estética. Não só pelas tramas narrativas do contista, deu-me o autor a nítida impressão de que a literatura brasileira de ficção dos nossos dias e seus leitores mais exigentes, não terão nada a temer ao inclui-lo entre os plenamente logrados a integrar a escala dos melhores do seu tempo.
Nas páginas de ilustrações, o autor usa a imagem da câmera fotográfica como T. S. Elliot usava a música no vocabulário dos Quatro Quartetos; tal como o sentimento da sílaba e do ritmo em Grande Sertão & Veredas, de João Guimarães Rosa ou em Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala; ou a música operística na pintura e também na paisagística de Roberto Burle Marx, que pintava cantando trechos de óperas. (Não nego que nos meus devaneios fotográficos chego a procurar cores nas sinfonias que ouço).
Não foi à toa que o pintor famoso, sem largar os pincéis e os recursos digitais que sabe usar com rara habilidade, seus vínculos com a Fotografia, (um refúgio plenamente realizado, para dar volume e forma, a intersecção partilhada nos seus quadros), converteu-se em ficcionista. A imagem e seu duplo processo de transformação é uma constante nas narrativas desse livro. O resultado, ao lado de sua exploração metalinguística, nos seus objetivos inerentemente estéticos, em que toda estrutura do gênero aparece, foi uma reunião de contos bem avaliados pelo autor do Prefácio, Wedson Barros Leal, e que será, depois de mim, ainda mais avaliado pelo leitor exigente, pela melhor crítica. Sem falar por especialistas de literatura comparada, posto que a obra aqui noticiada, sendo firme no essencial, é absolutamente “aberta”, uma des-coberta contínua, como diria Martin Heidegger, indicando sempre mais do que o que mostra, contemporânea a todos, com possibilidades infinitas. Protegida pelo escudo do cânone das boas categorias.
Marcus Prado – Jornalista