A ação impiedosa do tempo destrói todas as obras humanas de modo tão sutil que nós mesmos somos, sem o pressentirmos, os agentes e pacientes dessas informações.
Dir-se-ia que no campo espiritual existem sedimentos iguais às que se verificam no terreno material.
As gerações sucedem-se deixando camadas sobre camadas de ideias e sentimentos que se concretizam em atos e costumes e marcam a mentalidade de cada época do espírito humano.
Os povos de formação definida, já chegados à maioridade racial, evoluem lentamente, são, por índole, conservadores, de modo que, entre eles, os costumes e as tradições nacionais sobrevivem às gerações.
Nos países novos, etnicamente em gestação, pontos de convergência das migrações de outros povos, é o próprio movimento da população que produz a renovação contínua, incessante e rápida dos costumes com a introdução de usos estranhos e a imitação dos figurinos estrangeiros.
É o que sucede com o Brasil, notadamente depois que os modernos inventos encurtaram as distâncias e nos fizeram vizinhos dos Estados Unidos e da Europa.
Só assim se explica a metamorfose da vida brasileira, hoje com aspectos e modalidades bem diferentes, quando não opostos aos de 20 ou 30 anos atrás.
* * * *
Vieram-me à mente essas lucubrações ao meditar sobre o Natal que conheci nos meus tenros anos, cheio de encanto e suavidade.
O Natal do lares enfeitados, onde se reuniam famílias e se formava ambiente de intensa alegria, vivendo os moços, os velhos e as crianças momentos de verdadeira felicidade, ao som do harmônio e da flauta, à mesa frugal, ou nos salões onde se achava o presépio armado e adrede preparado para receber a visita do pastoril elegante.
O Natal dos carros de bois rangendo saudosamente pelas estradas, conduzindo as famílias dos engenhos que vinham “à rua” para ouvir a Missa do Galo.
O Natal das barraquinhas aristocráticas, cercadas de cadeiras para as famílias, donde mocinhas feiticeiras trocavam olhares discretos com os moços janotas da cidade, que se desmanchavam em amabilidades e tudo faziam para enviar uma prenda à sua predileta.
O Natal em que se ouvia o canto pausado do Glória a Deus nas alturas, por ocasião da missa tradicional, a que o povo assistia com o máximo respeito e silêncio religioso.
Natal dos fandangos, das lapinhas vistosas, dos presépios animados.
* * * *
Hoje, o Natal está desfigurado.
Sente-se que desapareceram o misticismo, a poesia, a beleza mágica de outrora.
É um Natal frio, vário, sem o encanto de outras eras.
É que as aspirações, os sentimentos, as ideias de hoje são bem diferentes dos que formavam o ambiente de nossa infância.
Tudo passa sobre a Terra.
Prof. José Aragão
Sob o pseudônimo de Fausto Agnelo.
Texto publicado no Jornal O Vitoriense, 31 de dezembro de 1939.