O ESPELHO DA CASA DE GEUDA (Primeira parte) – por Marcus Prado

“O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro” (Machado de Assis)

VOLTO AO PALÁCIO DE VERSALLES, não para rever as coisas e objetos já admirados em visitas anteriores; não para fotografar seus jardins, talvez entre os dez mais belos da França.  Na primeira vez, saí de lá com mais de 500 fotos das suas flores  encantadoramente rubras, mas que não se comparam com as espécies existentes na Mata Atlântica de Pernambuco, principalmente as tropicais plantadas por Vania  Grassano Caldas. Volto dessa vez para conferir  o trabalho de recuperação dos espelhos para muitos os mais belos do mundo, com exceção, para mim, do belíssimo espelho da sala de visitas da casa de Geuda, na Praça Diogo Braga (vizinha ainda hoje do Silogeu).  As molduras, o dourado, os bronzes o brilho: uma gigantesca obra de restauração foi feita na Galeria dos Espelhos de Versalles. Por coincidência, no dia em que estive lá, estava de plantão  o famoso Fréderic  Didier, arquiteto chefe dos monumentos históricos franceses, que coordenou os trabalhos. Elogiei o que fez, disse-lhe que a Galeria dos Espelhos recuperou seu esplendor original, e que estava linda. Mas, com certeza (para o espanto e surpresa de monsieur Fréderic), disse-lhe – visivelmente emocionado e saudoso de meu tempo vitoriense -, que não trocaria jamais o espelho da casa de Geuda por tudo o que estava diante de meus olhos naquele instante: os espelhos de sala mais visitada em toda a França desde 1678. A seguir faço reviver o diálogo que tivemos, o Monsieur Didier e eu:

– Quem era essa Geuda?  Que espelho de parede era esse, caro visitante, tão belo e tão importante para superar, uma só peça, o esplendor de todo o conjunto de peças únicas no mundo, de Versalles?

– Geuda era a mulher mais bela da cidade onde nasci: Vitória de Santo Antão.   Acho que a França inteira jamais teve outra mulher igual.  Nem a França de Simmone de Beauvoir (a quem fui levado a conhecer pessoalmente, quando a escritora esteve em visita no Recife na companhia de Sartre; nem a França de Edith Piaf, imortalizada no Brasil na genial interpretação teatral e musical de Bibi Ferreira, cantando: Des nuits d’amour à en mourir/Un grand bonheur qui prend sa place/Les ennuis, les chagrins s’effacent/Heureux, heureux pour mon plaisir); nem a França de Mirelle Matieux, que a vi cantar, no MUSEE MAXIM’S 3, rue Royale-75008/Paris: Dans ce vieux château, jamais aucun bruit L’histoire rapporte/Qu’une impératrice y passa la nuit /Et qu’elle en est morte/Quatre princes y sont nés/Et trois têtes couronnées/ Y furent assassinées/Mais il n’y a pas d’cabinets/Et pas d’robinets.”

– Começo a ficar curioso com essa senhora Geuda, exclamou o monsieur Fréderic.  Fale-me mais do espelho famoso de sua casa!

– O espelho de parede da sala de estar mostrava aos que passavam pela calçada, aos mais atentos,  belos  “lances” de pernas. Estava ela sempre à vontade na intimidade do lar, sempre vestida com pudor, geralmente  de saias curtas mas discretas, lendo seus livros prediletos, ouvindo noticiário ou novelas de rádio, ou numa conversa de família)

Víamos – na intencionalidade emotiva de nossos olhos juvenis e no despertar de nossa sexualidade -, os mais belos “lances” de perna , sem a bela mulher  jamais perceber ou desconfiar. Nas pernas de Geuda não  havia um só  enfraquecimento das fibras de sustentação dos tecidos.   Essa “peregrinação” , eu diria quase mística e  pagã, se daria  com maior freqüência, ao passar, na tela do Cine Iracema, o famoso filme ARROZ AMARGO,  com Silvana Mangano dando seus famosos “lances” de pernas, ao atravessar um rio do Vale do Sol.  Esta cena do famoso clássico do neorealismo italiano nos causou a mim e aos colegas do Pátio da Matriz uma grande emoção, aquelas primeiras emoções (inebriantes!) do despertar da sexualidade.  Joércio Lira de Andrade (filho do dono do cinema, que me deixava  entrar em todas as sessões, sem nada pagar ), Ubirasçu Carneiro da Cunha, que se tornaria um dos mais importantes poetas  da “Geração 60” do Brasil, que morreu ainda jovem, além de Jailton Andrade, outro saudoso e grande amigo que partiu.  Com a saída do filme em cartaz, ficamos todos sem saber o que fazer. “E agora, onde vamos encontrar  nesta cidade  pernas tão lindas como aquelas de Silvana Mangano?  Foi quando me lembrei da única alternativa naqueles dias inesquecíveis: O Espelho da Casa de Geuda!

Exigi de todos, ao passarmos lentamente pela calçada, na ida e na volta, muito respeito, discrição, e nada de “caboetagem”, prá que o evento não se vulgarizasse e que outros tantos colegas não encontrassem  a mina de ouro, que era só nossa e outros delas não tivessem competência para desfrutar.  Afinal, o que a gente queria, na verdade, não era ver o cruzar de pernas de Geuda, nisso  Geuda era  muito elegante e discreta. Nossa libidinagem  não chegava a tanto. Ela tinha muita classe no porte de vestir, no jeito de sentar. O que queríamos era ver as pernas de Geuda , as pernas que teriam dado nova versão ao famoso poema de Carlos Drummond de Andrade – Poema de Sete Faces – se o poeta  tivesse a sorte que tivemos  : “O bonde passa cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./Para que tanta perna, meu Deus,/pergunta meu coração./Porém meus olhos/não perguntam nada “.

A notícia do espelho da casa de Geuda, logo após as exibições do filme no Cinema de João Sabino e Lula Andrade, chegou aos ouvidos atentos de Manoel de Holanda, que ficou fascinado com a qualidade fílmica de ARROZ AMARGO. Cheguei a comentar com ele o filme, produzido pelo lendário Dino De Laurentis: A história em torno do triângulo amoroso formado pelo golpista Walter, sua amante Francesca e a inocente camponesa Silvana, tendo como pano de fundo a colheita de arroz feita por dezenas de mulheres no miserável Vale do Pó, no interior da Itália. Era no exato momento da colheita, que a atriz levantava a saia até no final das coxas. O resto já foi dito e contado. Sem falar o que não foi dito: o delírio da meninada do Cinema. Foi quando eu disse a Manoel de Holanda, que só havia uma alternativa viável e inofensiva  prá rever o filme já fora das telas do Iracema: o espelho da casa  de Geuda. Espelho que, de tão grande, parecia uma tela de cinema.

Discretos e até cerimoniosos, eis que saímos de braços dados, ele e eu (era assim que caminhávamos sempre pelo Pátio da Matriz) e fomos até à calçada da casa de Geuda.  CONTINUA…

Marcus Prado – jornalista 

 

 

 

 

 

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