Com a cooperação de alguns bons vitorienses mantenho, sempre crescente, um robusto acervo de fotografias que retratam a Vitória de Santo Antão vivida pelos nossos antepassados. São “imagens congeladas” das mais variadas situações. Desde um importante acontecimento que mudou a vida dos vitorienses para sempre – como a inauguração da energia elétrica em nossa cidade – ou, simplesmente uma visão estática de uma rua qualquer retratada em uma tarde de dia comum.
Pois bem, certa vez observando uma fotografia, repararei alguns detalhes que me fez pensar: este registro fotográfico deve ter sido por ocasião de algo importante.
Semana passada, ao ler um artigo escrito pelo renomado vitoriense Doutor Aloízio Xavier, de saudosa memória, pude, então, por ocasião de alguns detalhes – criança com a cabeça raspada – contidos no artigo, fazer a “ponte” com a referida fotografia.
Sendo assim, disponibilizo o artigo para que os amigos internautas do Blog do Pilako tenham a oportunidade de, além de realizarem uma boa leitura, conhecerem também os detalhes que me fizeram linkar uma coisa com a outra.
O crédulo Mestre Fagundes e o “over night” às avessas
Aloísio Xavier
No começo do segundo quartel deste século, precisamente no ano de mil novecentos e vinte e seis, passou a terra vitoriense a contar com seu primeiro estabelecimento bancário, o BANCO POPULAR DE VITÓRIA, que tantos e tão notáveis incentivos e benefícios haveria de proporcionar ao desenvolvimento do comércio, da agricultura e da indústria locais, até que viesse, anos depois, a acontecer o seu merencório e funesto desaparecimento.
Lê-se na magnífica “HISTÓRIA DA VITÓRIA DE SANTO ANTÃO, do eminente mestre e historiador conterrâneo Prof. José Aragão, Volume 2, págs. 146/147, que a primeira Diretoria do Banco se compunha do Diretor-Presidente, Cel. Antônio de Melo Verçosa, político de larga influência no Município; Diretor-Gerente, Inácio Pereira de Brito; Diretor-Secretário, Dr. Edgard do Nascimento Valois, sendo o Conselho Fiscal contituído por José Balbino Ferreira, Miguel Augusto de Lagos, Dr. Eurico Monteiro de Matos, Dr. João Cleophas de Oliveira e João Olímpio de Carvalho.
Colhe-se, ainda na mesma fonte, que o Banco passou a operar com diversas contas, pagando juros variáveis: conta-corrente em movimento, 2%; conta-corrente com juros, 3%; conta-corrente limitada, 4%; conta corrente com aviso prévio, 5% e prazo fixo , 6%.
Registro, de passagem, que, na oportunidade da constituição e da fundação do Banco, foi tirada uma fotografia de alguns fundadores, na Praça Leão Coroado, empertigados nos degraus da escadinha que dá acesso à entrada da estação ferroviária da empresa inglesa de transportes, então denominada Great Westrn of Brazil Railway. Nessa fotografia, que o meu caro e dileto amigo Dr. Edson Lins possui, encontram-se mau pai e meu irmão José, falecidos. Também nela estou, de calças curtas e com a cabeça inteiramente rapada por causa de uma rebelde infestação de piolhos. Foi essa a única vez que me deixaram assim, com um crânio de aspecto mongoloide. Para meu desprazer, esse humilhante evento depilatório ficou assim fotograficamente provado “ad perpetuam rei memoriam”.
Recordo mais que, naquele tempo, morava na cidade um ferreiro, homem de cor, correto e respeitado, mantendo sempre visível compostura nos modos e na indumentária. Era conhecido geralmente como Mestre Fagundes e morava sozinho em uma casa da atual rua Dr. José de Barros, no centro da cidade, onde mantinha também a sua oficina de ferreiro.
Nós, meninos naquela época, com a inconsequência própria da infância, íamos brincar na casa-oficina de Mestre Fagundes. Mexíamos nos seus instrumentos de trabalho, mudando-lhes os lugares certos, etc. De uma coisa estou certo. Desprestigiando velho ditado, nunca vi na casa do ferreiro Mestre Fagundes qualquer espeto de pau… Tenho incrustada na memória uma trela que fiz na oficina de Mestre Fagundes: vi um bacalhau ressequido e, com todo o empenho, apertei-o num torno de ferro, até esmigalhá-lo. Porque fiz isso, até hoje não sei. Teria Mestre Fagundes ficado sem almoço nesse dia?
Paciente e bom em todos os momentos era Mestre Fagundes. Jamais assumiu qualquer atitude hostil, jamais manifestou qualquer aborrecimento conosco. Acredito que Deus reservou-lhe um bom lugar, ao recebê-lo de volta.
Veiculou-se, naquelos idos, um episódio curioso. Criado o Banco, Mestre Fagundes, entusiasmado, como muitas outras pessoas, diante da novidade, resolveu depositar no estabelecimento de crédito a quantia de cem mil réis, poupança que lograra alcançar a duras penas e repetidos suores.
Assim é que, segundo se dizia, logo no primeiro dia de funcionamento do Banco, às oito horas da manhã, lá se encontrava Mestre Fagundes com seu rico dinheirinho na mão para confiá-lo à custódia do Banco. Talvez haja sido ele, até, o primeiro cliente depositante.
Todavia, ao deixar, plenamente satisfeito, o estabelecimento de crédito, começou Mestre Fagundes a ouvir comentários de pessoas desconfiadas e desinformadas, de índole pessimista, alertando sobre a temeridade de botar dinheiro no Banco, tais os riscos e perigos existentes.
Devo dizer agora que Mestre Fagundes era homem de muita simplicidade e credulidade. As pérfidas sementes da dúvida cedo germinaram no seu espírito, enchendo-o de suspeita e insegurança. Prestes a terminar o expediente, às quatro horas da tarde voltou Mestre Fagundes ao Banco e, para surpresa do gerente, manifestou o seu propósito de retirar o seu depósito.
Era praxe bancária, naquele tempo, se deduzir logo, no ato do depósito, o montante das despesas com o material de expediente, como caderneta, talão de cheque, etc. fornecidos ao correntista.
Desse modo, recebeu Mestre Fagundes menos do que os cem mil réis que depositara às oito horas da manhã daquele mesmo dia. Raciocinando em termos de grandezas inversamente proporcionais disse então Mestre Fagundes: “O pessoal bem que disse. Se, apenas oito horas depois, eu perdi tanto dinheiro, imagine-se se eu demorasse ainda mais tempo para retirar o meu dinheirinho. Iria perder tudo. Com sua credulidade ingênua, Mestre Fagundes inventara o “over night” às avessas.
(REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO – VOLUME 10 – 1988 – pág. 3 e 4.)