Werner Wilhelm Jaeger (1888-1961), filósofo, filólogo e classicista alemão, na sua obra monumental, Paideia (Editora Martins Fontes), sobre o legado e a formação do homem para a pólis, na Grécia Antiga, exercício de liberdade na busca de dar forma ao humano que está em nós, nos diz, em numerosas passagens, sobre um personagem do escol da sabedoria ática. Ninguém, ao aproximar-se dele e da herança da sua inteligência criadora, podia furtar-se à atração do seu espírito não só pessoal. O pernambucano da cidade de Salgueiro Raimundo Carrero faz parte desse conjunto de atitudes que chamamos de ética. Tem sido, para os da sua geração, uma graduação de adjetivos; como pessoa humana, jornalista e escritor; como dirigente de organismos culturais, por sua dedicação ao ensino e formação literária de novas vocações. Posso dizer, baseado num convívio de trabalho, que tivemos, durante mais de duas décadas, no Diario de Pernambuco, que nunca tive notícia de ninguém encolher os ombros com indiferença diante da trajetória profissional de Carrero.
Sobre um aspecto, entre vários, a ser visto na obra desse autor, no que é fruto aliciante do criar, aponto a preocupação do divino, a palavra Alma, como vindo, penso eu, das suas leituras da Bíblia, das prédicas protrépticas de Sócrates. Um devir, fruição estética e espiritual dos místicos, dos autores metafísicos do século 17, até o contemporâneo.
Se eu quisesse resumir em breves palavras, a impressão que guardo da Ficção de Carrero, eu diria que a sua obra reúne, num só bloco e unidade, como se acha agora reunida, o fenômeno Surpresa & Sedução, não há antítese nisso, a dor dos limites e da finitude, qual pele rasgada e recosturada em crostas metálicas. No diálogo preliminar do Plotágoras de Platão, a exortação da Sedução está presente. Como vejo em Machado de Assis (Dom Casmurro), um jogo sutil de Surpresa & Sedução, mas ele o faz de maneira singular. As personagens e espaços, vidas construídas por Raimundo Carrero, dariam em pormenor um grande painel, perduram irremovíveis na memória do leitor. É impossível iniciar uma apreciação teórica sobre personagem de Ficção de qualquer época sem voltar o olhar para a Grécia Antiga. Os componentes físicos da obra romanesca de Carrero não escapam dessa fruição. Para tanto, basta ler o relato ensaístico de José Castelo. Trata-se de uma chave para o entendimento dos enigmas, símbolos, espaços imaginados e a forma discursiva desse ficcionista, sobre o conjunto variado dos vultos humanos que povoam essa obra, os seus parentescos textuais.
Posso dizer que vi nascer o primeiro livro de Carrero: A história de Bernarda Soledade – A tigre do sertão (1975). Depois vieram novos sucessos: As sementes do sol – O semeador (1981), A dupla face do baralho – Confissões do comissário Félix Gurgel (1984), Sombra severa (1986), Viagem no Ventre da Baleia (1987), Maçã agreste (1989), Sinfonia para vagabundos (1992), Extremos do arco-íris (1992), Somos pedras que se consomem (1995). Depois vieram: As sombrias ruínas da alma (1999), Ao redor do escorpião…uma tarântula? (2000), O Senhor dos Sonhos (2003), O Amor não tem bons sentimentos (2008), Minha alma é irmã de Deus (2010) (Aqui o romancista encontra-se no ápice de sua carreira), Seria uma sombria noite secreta (2011), Tangolomango (2013), Romance do Bordado e da Pantera Negra (2014) – em coautoria com Ariano Suassuna, O senhor agora vai mudar de corpo (2015), Condenados à Vida (2018), Colégio de Freiras (2019).
Quando o coro de Prometeu, do divino Ésquilo, diz que só pelo caminho da dor se chega ao mais elevado conhecimento, chego a imaginar e dar razão a Raimundo Carrero. A escrita dos seus mais recentes livros, pela coragem, foi toda sob os desígnios de Zeus.
Marcus Prado – jornalista.