Ao sujeito interessado no entendimento das relações humana – no transcorrer da linha do tempo – a obra “Utopia”, escrita pelo pensador inglês, Thomas More, no alvorecer do século XVI, ainda é, indiscutivelmente, sob todos os pontos de vistas, um extraordinário exercício mental.
A obra, se bem discutida e analisada, provocaria intermináveis debates. Seu conteúdo, após múltiplas reflexões sociológicas, antropológicas, religiosas e etc, alimentaria discussões para todo um semestre acadêmico ou até mesmo um curso próprio, que iria muito além de um conhecimento específico.
Aos olhos das ciências já catalogadas, acredito que a verdadeira “Utopia” não reside nas relações sociais da suposta ilha, mas na possibilidade da mudança na natureza humana, apesar de compreendermos que o homem (mulher), no contexto atual, é fruto do meio.
No mundo selvagem, origem de todos nós, encontramos grupos das mais variadas espécies, organizados em “sociedades” hierarquicamente bem definidas, onde, invariavelmente, predomina a lei do mais forte.
No “mundo civilizado” e globalizado, até porque essa é a marcha vigente, e as novas tecnologias estão nos provando isso, imagino haver cada vez menos espaço para as relações humanas horizontalizadas, por mais que esse seja o discurso universal. Aliás, não devemos esquecer que a “maior obra” do homem foi dominar o próprio homem que, nos tempos atuais, defini-se bem na seguinte frase: “TODO O PODER EMANA DO POVO E EM SEU NOME É EXERCIDO”.
Sob o ponto de vista da historicidade, mecanismo que nos coloca dentro do tempo histórico do fato, procurando levar em consideração todas as variáveis inerentes ao cotidiano do acontecimento, neste caso do Thomas More, 1516, realcemos, em primeiro lugar, sua coragem, em segundo: sua inteligência e visão futurística.
Nessa época – final da Idade Média – discordar do clero, mesmo que por pensamento, ou provocar qualquer mudança no humor da nobreza, seria a mesma coisa que assinar a própria sentença de morte. Sugerir, mesmo que sem nenhuma perspectiva concreta, que o povo pudesse trabalhar cooperativado, dormir nove horas por dia e estudar para ascender socialmente, não deixar de ser algo abstrato, surreal, utópico e altamente subversivo.
Realçando às rígidas regras sócias e religiosas da Inglaterra, à época, logo entenderemos que o mundo utópico, imaginado por Thomas More, remonta, mesmo que de forma bastante diferenciada, um modelo social bem definido. A figura “tradicional” do escravo, por exemplo, reproduz algo que ainda perdurou por vários séculos após sua obra e evaporou-se no mundo atual. Aliás, o nosso Brasil foi o último país da América do Sul a elimina-lo por completo.
Mas, não seria nenhum absurdo, dizer que na contemporaneidade o capitalismo e a cultura do consumismo produziu, na nossa “Ilha Planetária”, uma espécie de “gaiola sem grade”, que nos aprisiona e nos escraviza pela vontade de ter e de possuir, mesmo que pelo desejo e pela ânsia, ambos, produzidos por uma química externa, alheia às nossas necessidades elementares, tão bem definida pelos estudiosos da Escola de Frankfurt, na metade do século próximo passado.
Na utopia de Thomas More a guerra é algo abominável. Mas, no entanto, mais adiante, arremata: “os utopianos não fazem a guerra sem graves motivos”. O rei da musicalidade brasileira, Roberto Carlos, certa vez, disse: “não importa os motivos da guerra, a paz é mais importante que eles”. Apesar da distância temporal entre as afirmativas, por incrível que nos possa parecer, ainda conviveremos, por muitos e muitos séculos ancorando nossas frágeis relações de paz naquilo que Jesus Cristo chamou de sepulcro CAIADO – uma espécie de hipocrisia social – onde, invariavelmente, trazer à luz a verdade, seja ela nas relações interpessoais ou na diplomacia intercontinental, seria, indiscutivelmente, uma retumbante declaração de guerra.
De resto, concluo, dizendo que a leitura do referido livro enriqueceu-me. O futuro que se descortina será mais uma etapa da busca utópica pelo mundo perfeito. Onde estará enterrada a formula da felicidade coletiva? Está dentro ou fora de cada um? Suponho que devemos aproveitar o incerto espaço de tempo que nos resta, no chamado “sopro de vida”, para tentar contribuir de forma proativa para um mundo melhor, tal qual sugeriu, no seu tempo (1516), o inglês Thomas More.
Amigo Pilako como vejo que vc está a gostar do lado menos nobre deese gigante diplomata Ingles, e Santo Catolico Romano, trago-lhe esta joia da literatura escrita por Chesterton, por favor, publique-a:
“A maioria das pessoas não entenderia a expressão de que a mente de Morus era como um diamante que um tirano atirou a um fosso porque não podia quebrá-lo. Não é senão uma metáfora; mas há vezes em que acontece de a metáfora ter muitas faces, como o diamante. O que moveu o tirano a ter tal horror àquela mente era a clareza dela. Era ela o extremo oposto de um cristal turvo, repleto somente de sonhos opalescentes ou de fantasmas do passado.
O rei e seu ilustre chanceler foram companheiros tanto quanto contemporâneos. Sob muitos aspectos, ambos eram homens renascentistas; mas sob alguns aspectos, aquele que era o homem mais católico era também o menos medieval, ou seja, havia talvez mais no Tudor daquele mero resto antiquado de medievalismo decadente que os verdadeiros reformadores da Renascença notaram ser a corrupção do tempo. Na mente de Morus não havia senão clareza; na de Henrique – embora ele não fosse nenhum tolo e certamente nenhum protestante – havia um quê de confuso conservadorismo. Como todo bom homem que calha de ser anglo-católico, este tem um toque de antiquado. Thomas Morus era mais racional, motivo pelo qual não havia nada em sua religião que fosse meramente local, ou, nesse sentido, meramente leal.
A mente de Morus era tal qual um diamante também por seu poder de cortar vidro, de penetrar coisas que, conquanto pareçam transparentes, são ao mesmo tempo menos sólidas e menos multifacetadas. Pois, na verdade, as heresias verdadeiramente consistentes geralmente parecem muito claras, como naquela época o calvinismo e agora o comunismo. Algumas vezes elas até parecem muito verdadeiras. Algumas vezes elas até são muito verdadeiras, no sentido limitado de uma verdade que é inferior à Verdade. Elas são, a um só tempo, mais tênues e mais quebradiças do que o diamante, pois é comum que uma heresia não seja uma simples mentira. Como o próprio Thomas Morus disse, “nunca houve um herege que só falasse falsidades”. Uma heresia é uma verdade que esconde todas as outras verdades. Uma mente como a de Morus estava cheia de luz, como uma casa feita de janelas; mas as janelas olham para fora, para todos os lados, em todas as direções. Nós poderíamos dizer que assim como a jóia tem muitas facetas, também o homem tem muitas faces. Nenhuma delas, contudo, é máscara.
Ora, essa grandiosa história tem tantos aspectos que a dificuldade de tratar dela num artigo tem que ver com a seleção, mas ainda mais com a proporção. Eu poderia tentar e falhar em fazer justiça a seu aspecto mais elevado, àquela santidade que agora está além até mesmo da Beatitude. Eu poderia igualmente preencher todo o espaço com a mais despretensiosa das brincadeiras com que o ilustre humorista se deleita na vida diária: talvez a maior brincadeira de todas seja o livro chamado “Utopia”. Os utopistas do séc. XIX imitaram o livro sem enxergar a brincadeira. Mas dentre uma perturbadora complexidade de aspectos ou ângulos tão diferentes, eu decidi tratar apenas de dois pontos. Embora a importância deles seja muito grande, não o faço porque sejam as mais importantes verdades sobre Thomas Morus, mas porque são duas das mais importantes verdades sobre o mundo no presente momento. Uma mostra-se mais claramente na morte dele, a outra em sua vida – ou talvez fosse preferível dizer que uma tem que ver com sua vida pública e a outra com sua vida privada. Uma está muito além de qualquer admiração conveniente, e a outra pode parecer, em comparação com aquela, um anticlímax quase cômico. Mas uma acerta em cheio nossa atual discussão sobre o Estado, e a outra a sobre a família.
Thomas Morus morreu a morte de um traidor por afrontar a monarquia absoluta, no sentido estrito de tratar a monarquia como um absoluto. Ele desejava e até ansiava por considerá-la algo relativo, mas não algo absoluto. A heresia que havia subido às cabeças no tempo dele era a heresia chamada Direito Divino dos Reis. Sob essa forma, ela é hoje considerada uma antiga superstição, mas já reapareceu como uma novíssima superstição sob a forma do Direito Divino dos Ditadores. Entretanto, a maioria das pessoas ainda pensa que ela é antiga. E quase todas elas pensam que ela é muito mais velha do que é. Uma das principais dificuldades de hoje é explicar às pessoas que essa ideia não era inerente à época medieval ou a tempos mais antigos.
As pessoas sabem que o controle constitucional sobre os reis foi crescendo por um século ou dois. Elas não percebem que qualquer outro tipo de controle jamais poderia ter funcionado. E, mudado o contexto, aqueles outros controles são difíceis de descrever ou de imaginar. Mas o homem medieval sem dúvida pensava no rei como governando sub deo et lege – traduzindo literalmente, “sob Deus e a lei”, mas envolvendo também algo atmosférico que, mais indefinidamente, poderíamos chamar de “sob a moralidade subentendida em todas as nossas instituições”. Os reis eram excomungados, eram depostos, eram assassinados, eram objeto de toda sorte de tratamentos, defensáveis e indefensáveis, mas ninguém pensava que a comunidade inteira sentia com o rei, ou que ele sozinho tinha autoridade suprema. O Estado não possuía os homens tão completamente, nem mesmo quando podia mandar empalá-los, como agora o possui nos lugares em que pode mandá-los para a escola primária. Havia uma ideia de refúgio que geralmente era uma ideia de santuário. Em suma, de mil estranhas e sutis maneiras, como deveríamos pensá-las, havia uma espécie de escape. Havia limites para César; e havia liberdade em Deus.
A mais alta voz da Igreja declarou que este herói era, no sentido verdadeiro e tradicional, santo e mártir. E é apropriado lembrar que, por uma razão muito especial, ele de fato está posto junto daqueles primeiros mártires cujo sangue foi a semente da Igreja nas primeiríssimas perseguições feitas pelos pagãos. Pois a maior parte deles morreu, como ele também, por se recusar a converter uma lealdade civil em idolatria religiosa. A maior parte deles não morreu por se recusar a adorar Mercúrio ou Vênus, ou figuras lendárias que se podia supor que não existissem, ou outras como Moloch ou Priapo, que era razoável esperar que não existissem. A maior parte deles morreu por se recusar a adorar alguém que realmente existiu e mesmo alguém a quem estavam de todo prontos a obedecer, mas não a adorar. O típico martírio geralmente ataca a prática de queimar incenso ante a estátua do Divino Augusto, a sacra imagem do imperador.
Ele não era necessariamente um demônio a ser destruído, mas simplesmente um déspota que não deve ser transformado em divindade. E é aí que o caso dos mártires chega assim tão perto do problema prático de Thomas Morus e assim tão perto do problema prático do atual culto ao Estado. E é típico de todo pensamento católico que os homens morram em tormentos, não porque seus inimigos “só falassem falsidades”, mas simplesmente porque eles não poderiam prestar uma reverência imoderada quando estavam perfeitamente prontos a prestar um respeito moderado. Para nós, o problema do progresso é sempre um problema de proporção: aperfeiçoamento é chegar a uma justa proporção e não meramente avançar numa direção. E nossas dúvidas a respeito da maioria dos incrementos modernos – a respeito dos socialistas na última geração, ou dos fascistas nesta geração – não procede de termos quaisquer dúvidas sobre a necessidade de justiça econômica ou de ordem nacional mais do que Thomas Morus deu-se ao trabalho de objetar uma monarquia hereditária. Ele objetou o Direito Divino dos Reis.
No sentido mais profundo, ele é então o paladino da liberdade em sua vida pública e em sua ainda mais pública morte. Em sua vida privada, ele é o tipo de verdade menos compreendida atualmente: a verdade de que a verdadeira morada da liberdade é a casa. Novelas modernas, jornais e teatros de tese (problem plays)[1] foram-se amontoando numa enorme pilha de lixo para esconder esse simples fato; um fato que pode ser provado de modo bastante simples. A vida pública deve ser quiçá mais regulada do que a vida privada, assim como um homem não pode perambular pelo trânsito de Picadilly exatamente da mesma forma que poderia perambular por seu próprio jardim. Onde há trânsito, deve haver um regulamento de trânsito. E isso também vale – ou vale ainda mais – quando há o que poderíamos chamar de trânsito ilícito, quando os governos mais modernos organizam esterilizações hoje e é possível que amanhã organizem infanticídios.
Aqueles que sustentam a superstição moderna de que o Estado não é capaz de fazer nada de errado serão obrigados a aceitar tal coisa como verdade. Se indivíduos têm qualquer esperança de proteger suas liberdades, eles precisam proteger sua vida familiar. No pior dos casos, haverá mais adaptação pessoal num lar do que num campo de concentração; no melhor dos casos, haverá menos rotina numa família do que numa fábrica. Em qualquer lar minimamente saudável, as regras são afetadas pelo menos parcialmente por coisas que não podem de modo algum afetar as leis estabelecidas, como ocorre, por exemplo, com aquilo que chamamos de senso de humor.
É por isso que Morus é vivamente importante como o humorista, como representante dessa fase especial do humanista. Por trás de sua vida pública, tão grandiosa quanto uma tragédia, havia uma vida privada que era uma perpétua comédia. Ele era, como o Sr. Christopher Hollis diz em seu excelente estudo, “um incorrigível pregador de peças”[2]. Todos sabem, é claro, que comédia e tragédia encontraram-se – como se encontram em Shakespeare – naquele alto palco de madeira em que o drama de Morus terminou. Naquele terrível momento, ele percebeu e apreciou a grande anedota do corpo humano, como de um tipo de amável madeira serrada; discutiu gravemente se sua barba havia cometido traição; e, subindo as escadas, disse: “Veja como estou seguro cá em cima! Descer, posso fazê-lo sozinho.”
Mas Thomas Morus nunca desceu aquela escada. Ele havia terminado com todas as descidas e movimentos descendentes; e desapareceu aos olhos dos homens quase à maneira de seu Mestre, que, ao ser erguido, puxou todos os homens consigo. E encerrou-se a escuridão ao seu redor, e as nuvens se interpuseram, até que, muito tempo depois, a sabedoria capaz de ler tais segredos viu-o fixado muito acima de nossas cabeças, como uma estrela em regresso; e firmou seu lugar nos céus.”
Por G. K. Chesterton
St. Thomas More, capítulo retirado do livro The Well and the Shallows (1935)