A bengala de Jordão Emerenciano e o cachimbo de Gilberto Freyre eram apenas ornamentos de circunstância. Charme, devaneios de quem vivia exilado nos trópicos. Jordão era um Monarquista saudoso. Gilberto era “um anarquista no bom sentido”. Gênio. A bengala de Charles Chaplin (leiloada em Los Angeles, em 2012, pelo valor de US$ 90 mil), era um componente corporal da cena fílmica. O corpo e a bengala de Chaplin falavam, assim diria Pierre Weill, autor do famoso “O Corpo Fala”. Como a bengala inseparável de Winston Churchill. Era como o chapéu do Indiana Jones (não havia tiroteio que desmanchasse a sua aba irremovível); como a bengala luxuosa de Arsene Lupin; como o chapéu de Dom Quixote de La Mancha (não perdia o seu prumo, até diante dos Moinhos de Vento); como o chapéu e a bengala de Martin Heidegger (juntos até no exilio da Floresta Negra); como o chapéu de Santos Dumond, que voava com ele; como o chapéu-capacete de Safari inglês, (o Pith Helmet), de Gilberto Freyre, quando das suas pesquisas pelas colônias portuguesas na África; como o chapéu, de estilo clássico, de Luiz Delgado, até quando dava aulas na Faculdade de Direito. O chapéu de Robin Hood era inseparável dele, na lendária Floresta de Sherwood, como a bengala do famoso espião James Bond. Inesquecíveis são o chapéu e a bengala da pintora Geórgia O`Keeffe, na sua fase de encantamentos mais criativos, em Santa Fé (Novo México), hoje são peças de museu; ou como o chapéu de Augusto Lucena (ganhando ou perdendo eleições, não saia da sua cabeça). Finalmente, como o chapéu de abas largas e desalinhadas de James Joyce, e o chapéu de Plinio Pacheco, em Nova Jerusalém, montado no seu cavalo.
A bengala de Francisco Brennand tinha uma finalidade incomum, única, singular, quando as suas peças saiam do forno cheio de calor, raios e incandescências. Ouvidos atentos do criador, o toque sutil da parte extrema da bengala sobre a superfície plana da cerâmica era determinante para saber, com exatidão, sobre a qualidade final, a autonomia da peça. Se, no forno, alcançara o seu efeito plástico final. Tive a curiosidade de fotografar, em câmera lenta, esse “ritual”, um atributo visto, apenas, nas oficinas dos sábios artesões.
Francisco tinha o hábito de dar passeios diários pelas salas das esculturas, na Várzea. Ao passar por cada peça, nova ou antiga, filha do barro e do fogo, fazia o “teste de qualidade” com o uso do seu termômetro mágico. Fazia-me lembrar do Edmund Husserl citado por Gilles Deleuze (“Lógica do sentido”) quando infere um Ver e Ouvir originários transcendentais a partir da “visão” perceptiva. Nada perturbava Brennand nessas horas. Assim como ele sabia ler as cores, era íntimo na rotina dos sons e suas magias. Brennand não teria, homem da Várzea do Capibaribe (a mais bela do Recife), o mesmo prodígio de Michelangelo quando terminou a escultura do seu “Moisés”. Brennand nunca exclamaria diante de sua escultura: “Parla!” Não era a perfeição o que ele queria, muitas peças ficaram e permanecem partidas. Tudo em Brennand era magia, um conjunto de singularidades, exercício do inconsciente que exprime o que designa. A bengala era instrumento de medição acústica.
Num retorno à Oficina de Francisco Brennand, na Várzea, quando da recente reabertura do seu Museu, não vi mais essa bengala. Soube que, no dia da sua morte, a filha Neném Brennand guardou-a para a cerimônia do adeus. “Fiquei com ela em casa, por algumas horas. Só pensando no momento de entregá-la nas mãos dele de novo Se foi com ela, virou chama e no fogo suas ondas sonoras se confundiram com os cânticos de Deus”.
Marcus Prado – jornalista